Friday, March 6, 2009

Nós no século XX(I)


Carlos Queiroz, o seleccionador nacional, deu ontem uma interessante e reveladora entrevista num dos canais da TV Cabo. Não fazia a mínima ideia de que o treinador da selecção iria lá estar (não tenho por hábito ver programas de televisão que falem sobre futebol por motivos óbvios), mas fiquei completamente colado ao ecrã, pois estava lá, para além de Queiroz, Luís Freitas Lobo (e João Pinto, para ser totalmente verdadeiro).

A meio do programa, dei por mim a pensar que tinha voltado ao passado. Comecei a ouvir argumentos que já outros tinham ouvido noutros lados. Voltáramos à questão dos naturalizados, com Liedson à cabeça, mas ainda mal refeitos do trauma de Deco e Pepe. Infelizmente, tenho ouvido de muitos treinadores e jogadores de top - o que os responsabiliza ainda mais face à opinião pública - que os naturalizados não deveriam jogar na selecção. Afinal de contas, não eram verdadeiros portugueses, como nós. Creio que não terá faltado muito para ouvirmos a expressão "portugueses de segunda".

Que mentalidade retrógada vem a ser esta? Todos os jogadores que jogam neste momento pela selecção cumprem todos os requisitos previstos na lei para poderem ser considerados portugueses. Não creio que a lei indique que haja maior ou menor nível de portugalidade. Onde está essa linha? É o Bilhete de Identidade? É o nome? Faz mais sentido ter na selecção jogadores como Manuel da Costa, por exemplo, incapaz de dizer duas palavras em português e que conhece o país pelas três visitas que cá fez quando era rapaz? Quem somos nós para dizer que um jogador como Liedson, a título de exemplo, não se sente português? Um homem que vive e trabalha neste país há praticamente seis anos, onde tem a sua família (ou parte dela) e onde criou raízes?

Este comportamento, infelizmente típico em nós, vem sempre escamoteado de alguma forma. No caso de ontem, a questão era o futuro do futebol de formação português. A questão está completamente posta de pernas para o ar: se Liedson se naturalizar e mostrar que quer representar a selecção, não estará automaticamente apto a fazê-lo. Terá, como todos os outros, de mostrar que merece lá estar, independentemente do seu local de nascimento ou residência. A isto Queiroz respondeu de forma simples, mas muito inteligente: virando-se para João Pinto, disse "Sabem como é que vão conseguir ultrapassar o problema dos estrangeiros? Jogando melhor do que eles, sendo melhores do que eles."

São estes comportamentos, sempre enevoados por algum argumento mais ou menos intelectual, que fazem com que racismo e xenofobia perdurem. Poderíamos discutir os critérios da lei - se deveriam ser mais apertados ou específicos -, mas dizer que a quem opta por ser português não é permitido sê-lo de pleno direito parece-me desonesto e imoral. Quando isto acontece num país de gerações de emigrantes...

2 comments:

Nazir said...

Obrigado Vasco, por tão revoltado e esclarecedor texto. Às vezes, as coisas mais evidentes parecem as de mais difícil alcance, exactamente porque vêm encobertas de argumentos paralelos. Dar cor ao racismo é o que se tem visto ultimamente. Algo que torna tudo tão mais pernicioso. Ouvi de João Pinto o seguinte comentário: "não são portugueses de raiz". Exactamente a mesma frase de Le Pen há uns célebres anos atrás (coisa que lhe valeu um carrito): "ils ne sont pas français de souche". A única diferença é que em França, país normalmente considerado chauvinista, estas declarações foram alvo de críticas brutais por parte de todos os quadrantes da opinião pública. Em Portugal, assustadoramente, o comentário passou algo desapercebido, parecendo mesmo que a ideia roçava mais um conceito do que um preconceito.
Deixo aos Joões Pintos deste mundo afora a seguinte pergunta: a geração de ouro que há pouco comemorou os fantásticos feitos de há 20 anos atrás era ou não era dirigida por um treinador nascido na África do Sul? O mesmo treinador (curioso) que lidera a selecção actual, este mesmo com residência em Maputo. Para não citar outros exemplos merecedores de estátuas na Catedral (por falar em Maputo). Os exemplos seriam inesgotáveis, começando com os patrícios liderados por Otto Glória. E Zico, muito ligado a Portugal (terra de seus pais) é português ou brasileiro? E Pires, que em tempos vislumbrou-se como forte hipótese para a Luz e para a selecção (remexam nas Bolas antigas e vejam a opinião do mesmo e confuso João Vieira Pinto).
O futebol, como sempre dissemos, meu grande amigo, é um laboratório da vida. Para o bem e infelizmente para isso também.
Um grande abraço e continua!
Teus textos são de uma clarividência e duma acutilância fora de série.
nazir

Vasco Mota Pereira said...

Muito obrigado, Nazir, por me presenteares por um comentário tão mordaz quanto triste a realidade com que por vezes nos deparamos. É bom termos leitores assim desse lado; é sem dúvida um incentivo para continuar a escrever e a tentar ver o mundo com os nossos olhos - nem melhores nem piores do que outros.

Hesitei bastante antes de publicar este artigo, confesso, mas há coisas que tenho de dizer, independentemente de se adequarem ao restante teor deste blogue ou não. São coisas como estas que me fazem fervilhar o sangue, numa era em que devíamos todos aprender a ser mais tolerantes, mais abertos, mais tolerantes. E o que vemos? Um lento mas constante regresso de cada um à sua concha, refugiando-nos nos argumentos mais básicos que conseguimos encontrar - a cor, a língua, a nacionalidade. É uma triste realidade, infelizmente mil vezes amplificada pela televisão por ser veiculada por pessoas com presença assídua neste meio de comunicação.

Um forte abraço para ti, estejas onde estiveres